...tornando na volta do mar...

Ana Isabel Ribeiro


Já muito foi escrito, e bem, sobre o conjunto da obra de David de Almeida, aprofundando aspectos particulares do seu também já longo percurso de pintor e gravador. Apetece, por isso, encontrá-lo um pouco mais á frente, observar este conjunto de trabalhos inéditos expostos na Cisterna da Casa da Cerca. Também, porque para tanto é necessário recuar, encontrar o fio condutor construído por este artista que, independentemente do suporte em que trabalha ou da temática em causa, revela um corpo coerente de razões plásticas alicerçadas em torno de uma raiz ontológica como valor matricial da sua obra. Incansável viajante, conhecedor de cantos e recantos do mundo, David de Almeida é uma espécie de intermediário entre o real visível e a sua transformação em matéria artística. As suas obras reflectem geografias, uma vez que nelas traça itinerários que dão conta das suas andanças e da bagagem acrescida que transporta no seu regresso a casa. Por isso, David de Almeida é também um contador da história e não de histórias — essas colam-se mais tarde, quando se recorda a partida e a chegada ao lugar, quando se adicionam e inventam impressões e se retém a forma, a cor, o cheiro, a textura, quando sensorialmente se consente no caminhar do olhar. Não deixa de ser interessante verificar que a mobilidade do seu percurso enquanto individuo se reflecte claramente na sua obra, agora enquanto artista (se é que esta dicotomia tenha, neste contexto, alguma pertinência), construída por pulsões temáticas, acompanhadas de sucessivos apuramentos da tecnologia do fazer que se exprimem de forma desigual ainda que não escamoteiem as suas constantes, o tal fio condutor de raiz ontológica já referido.

Tudo se gera e acontece a partir de uma superfície plana, simulacro do chão de todos os aconteceres posteriores, onde se modela e imprime, onde se adicionam e subtraem a lisura, o relevo, o acidente, a inquietação do espaço, do tempo e dopensamento sobre “o lugar” ou “a coisa” que a mão exprime e relata dando corpo e consistência à obra plástica. Porque o seu trabalho de gravador passa também muito pela aparência da aleatoriedade, onde afinal tudo ou quase tudo está, de facto, sob controle — talvez seja este o seu fascínio pelo mundo, a recriação dos seus planos como ponto de partida, como base de uma construção.

Curiosamente, do conjunto de trabalhos apresentados nesta exposição está ausente esse tratamento da superfície. O fundo é branco, fonte de luz, quase liso e uniforme como a própria cor que, simbolicamente, invoca a pureza, a sabedoria, o divino, a paz ou ainda a ausência da cor. É este um branco que se inscreve numa lógica interna e já designada como “a gramática do branco” (1), que surge na obra de David de Almeida na década de 70 quando abandona a pintura e se dedica à gravura, momento a partir do qual é cada vez menos clara a contaminação formal e metodológica de abordagem ao assunto entre as duas práticas artísticas.

Mas o reencontro destes trabalhos com obras anteriores não acontece apenas por esta via. Ele inscreve-se também em genealogias anteriores que temporalmente se situam antes da década de 70 nas quais David de Almeida, ultrapassando a “estratégia do abstracto”, se reencontra com o homem, ou seja, “o homem e as suas contradições e epopeias estão ali a toda a volta, o artista toca-lhe, ausculta-o, lê-lhe as dúvidas e as dores, reconstitui o itinerário da sua peregrinação pelos loca infecta” (2).

Cruzando ainda uma outra premissa do trabalho deste artista, reencontra-se também neste grupo a força da linha traçada pelo recorte, pela fluência das passagens que se operam de uma para outra obra através da reutilização da forma recortada, geradora de um ritmo de cheios e vazios (ou de presenças e ausências), que lhe confere proximidade e parentesco. Este ritmo é sublinhado pelo facto de a maioriadessas formas, que se adicionam ao branco do fundo, serem realizadas a preto, cor portadora de uma carga significante inversa à cor de suporte, associada à morte, à dor, à solidão e à tristeza. O vermelho, a terceira cor que intervém nestes trabalhos, pontua o perigo, o sangue, o amor, a alegria e a festa.

Os recortes, onde predomina a forma circular, remetem para as rotas desgovernadas das embarcações, traçadas na intuição e na exactidão das estrelas e do mar imenso que, inesperadamente, apenas ensaiavam a viagem já que, pelo capricho do vento e do erro, tornavam ao ponto de partida, fazendo um círculo quase perfeito. Outros recortes, em tecidos texturados, aproximando-se da geometria do quadrado ou do rectângulo, coladas também ao fundo branco, trazem à memória as velas pandas enfunadas pelo vento, impulso primeiro e último gerador de movimento que possibilita a viagem. Outros ainda, aproximam-se de bandeiras que identificam a embarcação e os viajantes e que, para quem vivia o tempo das naus e das caravelas, era o sinal da chegada breve da paz ou da guerra.

Feltro preto, vermelho e branco, finos vimes, alinhavos pretos, vermelhos e brancos (que se substituem ao traço) e dois livros sobre a história da China contada às crianças, são as matérias primas utilizadas por David de Almeida para evocar na Cisterna da Casa da Cerca, lugar da água enquanto recurso indispensável da vida quotidiana, Fernão Mendes Pinto e a sua Peregrinação. O sentido desta evocação, intencional por parte do artista, põe em evidência uma das muitas geografias que se cruzam ao longo da vida de Fernão Mendes Pinto, precisamente Almada, onde após o seu regresso a Portugal em 1556, compra uma quinta, constitui família e escreve a Peregrinação, apenas publicada em 1614, ou seja, 31 anos após a sua morte que ocorre em 1583. Este longuíssimo texto “mostra os homens sem maquilhagem. Revela-nos como continuamente se cruzavam, nos mares e terras desconhecidas, os terríveis caminhos da vida e da morte” (3). Livro de História mas ao mesmo tempo de ficção, que “também não se esgota como literatura de viagens”, é um relato que “nem é vida de santo nem de senhores”, em que o narrador “conta a sua história envolta em múltiplas e espantosas histórias”, conduzindo-nos num“jogo de confessa esconde” (4).

E é exactamente por esta via, por isso também através de um jogo cujas regras são preestabelecidas pelo artista que, recorrendo à metáfora e à leitura semântica, sobre um branco de fundo estático em oposição ao movimento perpétuo das águas do mar, David de Almeida ensaia a sua própria ficção e transforma um argumento de escrita em argumento de obra plástica, recentrando e reactualizando temáticas transversais à condição humana e aos riscos que lhe são e estão inerentes. Também, e como já foi escrito a propósito da sua obra “porque a arte de David de Almeida é fundamentalmente um jogo. Ou, se o quisermos, um evidenciar das regras do jogo que trouxeram o homem estético do princípio até ao fim da História”. (5)

Este conjunto de trabalhos resulta, em termos de uma abordagem mais academizante, num híbrido. Eles são e não são colagens; eles são e não são assemblages. São colagens numa lógica inventada pelos cubistas, enquanto exploração das diferenças entre a representação e a realidade, mas não o são exactamente na intencionalidade que lhes deu origem e que as suportam. Aproximam-se da assemblage na medida em que são obras criadas unicamente a partir de materiais preexistentes. Porém, o artista não se assume como um recolector de objectos e tem um protagonismo outro que está para além de encontrar uma coerência assertiva dos vínculos, directos ou indirectos, passíveis de estabelecer entre esses mesmos objectos (6). O sentido híbrido destes trabalhos é ainda evidente na medida em que se está perante uma construção, um processo simultaneamente cumulativo e aditivo operado sobre umasuperfície, mas onde intervêm elementos manualmente fabricados pelo autor, excepto os vimes e os dois caderninhos chineses, ainda que o procedimento técnico seja semelhante ao utilizado na assemblage.

Nesta exposição David de Almeida é uma espécie de torna-viagem já que, quase duas décadas passadas, explora de novo mares já por si navegados, consentindo-se esta nova aventura pelo simples prazer de chegar agora a um outro porto. Foi na década de 80 que surgiram os primeiros trabalhos em que a temática do mar ou mesmo de quem o habita como, por exemplo, as baleias (7), alcançou pertinência na sua produção plástica. Em 1983, a exposição “Do mar de hoje” (8), ano também da realização da exposição “História Trágico-Marítima”, colectiva na Sociedade Nacional de Belas Artes em que participa, dão visibilidade a um projecto, depois interrompido, e que é exactamente retomado na Cisterna da Casa da Cerca.

Entre aquele e este tempo ficou apenas aparentemente suspenso o que veio agora a confirmar-se como um fio condutor que afinal estava apenas ancorado num recanto de memória, deixando o pensamento e as mãos livres para que outras bússolas ditassem novas jornadas. E se, quando David de Almeida “desandou em conquista do mar, na peugada dos ecos da nossa história trágico-marítima” (9), estava recém chegado de um caminho em que a cor invadiu frutos replicados, em partes ou no seu todo, numa escala que os abstractrizava e desajustava da sua própria corporeidade, depois da escuta aturada desses mesmos “ecos”, abandona de novo “o branco como fundo evocador, cosmogónico” (10). As superfícies tornam-se mais densas e imperativas, por vezes auto-suficientes enquanto expressão, o questionamento da história do homem é vertical, descendo até às quatro idades do mundo.

(1) Cf. DUARTE, Luiz Fagundes-David de Almeida fecit. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986, p. 27.

(2) ldem, p. 26

(3) COELHO, António Borges — Fernão Mendes Pinto peregrino de três oceanos: Atlântico, Indico e Pacífico. In “Mestre Andarilho" painel de azulejos em homenagem à Peregrinação de Fernão Mendes Pinto de Rogério Ribeiro, Fórum Municipal Romeu Correia, Almada: Casa da Cerca - Centro de Arte Contemporânea, 1998, p. 27.

(4) ldem,p.25.

(5) Cf. DUARTE, Luiz Fagundes, op. cit, p. 36.

(6) Recorde-se que David de Almeida realizou já exposições, como por exemplo, “Assemblages 2001-02’ Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira, 2002) e “David de Almeida’ (Lisboa, Galeria Ara, 2002) que integrava 23 colagens, onde ambas as técnicas são mais claramente assumidas nos seus pressupostos técnicos, criativos e plásticos.

(7) Série sobre as baleias realizada em água-tinta, apresentadas pela primeira vez em 1986, numa exposição na Galeria 111 (Lisboa).

(8) Ver catálogo da exposição no Centro Cultural de S. Lourenço, Almancil, em 1983, apresentada no ano seguinte na Junta de Turismo da Costa do Estoril.

(9) Cf. DUARTE, Luiz Fagundes, op. cit., p. 39.

(10) FERNANDES, Maria João — Os signos da pedra - a luz do signo. ln ‘David do Almeida’, Lisboa. FCG, Jan.-Fev. 1986).

(11) Na estética chinesa “Toda a arte tem, pois, como fim não a manutenção do Yang e a rejeição do Yin mas sim a manutenção do equilíbrio de ambos, já que um não pode ser sem o outro. A chave da relação entre Yang e Yin chama-se Hsiang sheng ou ‘impulso recíproco’, ‘inseparabIlidade’. O ser e o não-ser são reciprocamente gerativos: o som está ligado ao silêncio, a luz ao espaço. Daí a importância da ideia de vazio como correlativo da noção de forma: (...)‘. In CARCHIA, Gianni; D’ANGELO, Paolo (dir.) - Dicionário de estética. Lisboa: Ed.70, 2003, p. 66.

(12) Neste sentido, importa sublinhar e acrescentar algo mais ao sentido simbólico do mar: “Símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e a ele regressa: lugar de nascimentos, transformações e renascimentos. Águas em movimento, o mar simboliza um estado transitório entre as possibilidades ainda informais e as realidades formais, uma situação de ambivalência, que é a da incerteza, da dúvida, da indecisão, e que pode terminar bem ou mal. Daí que o mar seja ao mesmo tempo a imagem da vida e da morte’. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain - Dicionário dos símbolos. Lisboa: Círculo de Leitores, 1997, p. 439.

in catálogo Exposição na casa da Cerca, Almada, 2006.

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