David de Almeida - Tempos e Lugares

Ana Almeida
Sónia Vespeira de Almeida

Tempos

David de Almeida nasceu em São Pedro do Sul, numa família de ferreiros. A circunstância de ser natural desta vila da Beira Alta e o convívio com a arte do fogo viriam a determinar o seu percurso. O trabalho com o metal foi desde cedo uma opção, primeiro através da gravura, no trabalho das matrizes, e, depois, com a associação deste material ao papel e à tela, numa “ânsia inconsciente de transformar a tradição em criação, e o simplesmente utilitário em estético”[1].

Na oficina paterna cruzavam-se os quotidianos rurais cujo trabalho na terra reclamava assiduamente o ofício do ferreiro no fabrico de alfaias agrícolas que iriam sulcar os campos circundantes. E foi a partir deste universo que David de Almeida iniciou os seus diálogos com a paisagem e com o património arqueológico e etnográfico desta região. Como afirma Françoise Cachin (1985), a paisagem é um espaço elaborado pelas forças conjugadas da natureza, do homem e do tempo”[2]. Mas esta é também construída pelo pintor que a aborda, observa e traduz.

A sua obra revela um fascínio pelos diferentes espaços e tempos que constituem a história da humanidade. O lugar de nascimento proporcionou o contacto com o tempo das antas e das “pedras escritas”, primeiro com as do Castro Cárcoda e Serrazes, geograficamente mais próximas, e, mais tarde, com as de Lanhelas, em Caminha, ou as de Vila Velha de Ródão.

A abordagem às gravuras rupestres e às manifestações da Pré-História não foi feita apenas de um ponto de vista formal. David de Almeida rodeia-se assiduamente de estudos científicos sobre o assunto, tendo por isso constituído uma vasta biblioteca. Os seus fascínios conduzem-no, assim, a um diálogo com as narrativas científicas sobre aqueles que convoca para os seus trabalhos. No caso de Serrazes, não encontrou respostas na Arqueologia relativamente aos conjuntos de círculos concêntricos esculpidos na face da pedra. Insatisfeito, inquieto, investigou e desenvolveu uma teoria baseada na experimentação e reprodução da funcionalidade da pedra. Para David de Almeida esta é um calendário solar no qual “se marcam os solstícios e as estações do ano, o nascer e o poente do Sol. O ciclo dos anos e dos séculos. É um livro de ciência, gravado com pedra sobre pedra pelas mãos e pela inteligência do homem” [3].

O artista partilha igualmente com a Antropologia o fascínio pelo “outro” que procura dotar de sentido. Seja este “outro” um povo “arqueológico”, os baleeiros da açoriana ilha do Pico, as pessoas que circulam pelas ruas de Arzila, os destemidos marinheiros da História Trágico-marítima ou os macaenses e chineses que quotidianamente vivem o Jardim da Guia em Macau. A todos estes “outros” David de Almeida detém-se a observá-los, a perscrutá-los, a investigá-los. Para Arnd Schneider[4], o conceito de “apropriação” implica a dimensão da aprendizagem e da transformação. Neste sentido, David de Almeida estabeleceu diálogos com os diferentes contextos culturais que com ele se cruzaram. Esta atitude é particularmente evidente quando elabora projectos de Arte Pública. O pintor dirige-se ao lugar, observa como é utilizado e fruído. Senta-se, toma notas, desenha e sente a responsabilidade de assumir a autoria de um fragmento de lugar.

No início dos anos oitenta, a “Pedra Escrita de Serrazes” tornou-se o “umbigo de David de Almeida”[5]. Nela procurou tornar contemporâneo o tempo dos diferentes “outros” que vão pontuando a sua obra. Observada, tacteada, investigada, toma-lhe de empréstimo os seus quotidianos, os seus misteres, as suas viagens, actualizando-os com a linguagem do seu tempo. Com o “cast paper”, molda a pedra e “imprime” as provas da gravura executada pelo seu “colega da pré-história” e que viriam a resultar na série “Exercícios Líticos”, exposta na Bienal de São Paulo, em 1983. Desta série, a branco, numa homenagem a todas as cores e com evidente respeito pela morfologia da gravura rupestre, ressalta a textura do papel que se funde com os acidentes da face escrita do petróglifo.

Depois aventura-se. Só o branco já não o satisfaz e provoca o colega pré-histórico, para além de Serrazes, Cárcoda, Seixa e Lanhelas. E aqui, alargando a sua procura a outros lugares desafia o branco e inicia uma espécie de jogo com as formas das gravuras rupestres: os moldes são seccionados (rectangulares, quadrados, triangulares e circulares) e cuidadosamente montados, subvertendo a posição original. E, provocando, esconde, revela, ilumina, fragmenta, isola, rasga, utilizando jogos contrastantes de cor que velam e revelam os seus relevos.

A partir desta relação com a “Pedra de Serrazes”, e ainda na década de 80, retoma a Pré-História e o seu universo mitológico através de trabalhos onde agrega o ferro à pasta de papel ou à tela numa mesma obra, fazendo a síntese formal e técnica de toda uma década de trabalho. Alarga, ainda, o universo geográfico da Pré–História citando outros monumentos líticos, como Stonehenge, ao qual irá aliar o universo cromático transportado de uma viagem ao Novo México.

A sedução pela cor prolonga-se pelo início dos anos noventa onde continua a invocar os quotidianos pré-históricos, nomeadamente na sua dimensão ritual, como nas gravuras “Adoração ao Sol”, “Máscara”, “Oferenda”, “Serpente” e “Bisonte”. Este conjunto de trabalhos é pautado por uma necessidade de recuo temporal e de diálogo com uma época não habitada pelo homem, aludindo à formação do mundo e ao início da vida na Terra: “Devoriano”, “Pré-Cambriano”, “Carbonífero” e “Plastoceno”.

Lugares

O olhar do artista é sempre desafiado pelo tempo, pelo lugar e pelos vestígios da sua memória. Todos os lugares acabam por marcar a sua obra e, por vezes, a sua obra o local. Aqui revela-se uma outra característica do trabalho artístico David Almeida: a influência da vivência dos lugares que percorre e aos quais retorna, na tentativa de construir uma identidade do presente através da investigação do passado.

Visitou Marrocos por diversas vezes, tendo sido efectuadas as estadias mais prolongadas em Arzila, onde participou em workshops internacionais de Gravura. A necessidade de fixar o lugar levou-o a arrendar uma casa na Medina que confinava com a antiga muralha portuguesa. Marrocos e Lisboa: a sua incansável busca do passado para se identificar no presente viria a reflectir-se na série de colagens “Trágico-Maritima” e de gravuras, em que o passado, e todo o seu imaginário, convivem com o quotidiano marroquino das caravanas ou da mulher que vai ao designado “cemitério português” em Arzila. A expansão de Portugal no mundo, e, sobretudo, a vertente de quem encara o desconhecido, viria mais tarde a ser retomada por David de Almeida na exposição de homenagem a Fernão Mendes Pinto e às suas “peregrinações” realizada em 2006 em Almada. Nesta exposição, a linguagem da série “Trágico-Marítima” foi retomada num conjunto de obras concebidas especialmente para a velha cisterna da Casa da Cerca.

Depois de África, a Ásia. Apesar da presença portuguesa em Macau, a sedução pelo lugar tomou como objecto os elementos da mitologia chinesa, representados no painel instalado, em 1996, na Colina da Guia no topo da qual são içados os Sinais de Tufão na época das monções.

Estas peças tridimensionais foram, nos finais da década de noventa, transportadas para a superfície plana da gravura. Daqui resultou uma série de trabalhos com grandes superfícies uniformes, a negro, rasgadas pontualmente a branco, na continuação da linguagem desenvolvida na série “D’ après Malevich”, na qual o contraste é mais marcado. A linguagem formal deste conjunto de trabalhos vem a ser retomada, em 2006, com “Visão Interior”, série em que é particularmente manifesto o cruzamento das diferentes épocas na contemporaneidade do artista, nas quais se intersectam os tempos pretéritos e os lugares experienciados no presente, como se David de Almeida, do interior de uma anta observasse os raios de luz que invadem a escuridão do seu interior.


[1] Duarte, Luiz Fagundes – David de Almeida Fecit. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1986, p. 12.
[2] Cachin, Françoise - «Le paysage du Peintre» in Pierre Nora (dir) – Les Lieux de memoire: II, La Nation, Gallimard, Paris, 1985, pp. 435 – 486
[3] DUARTE, Luiz Fagundes – David de Almeida […], p.32.
[4] SCHNEIDER, Arnd – Appropriations. In SCHNEIDER, Arnd; WRIGHT, Christopher - Contemporary Art and Anthropolgy. Great Britain: Berg, 2006, p. 34
[5] DUARTE, Luiz Fagundes – David de Almeida […], p.31.

In David de Almeida, Edição ACD, 2008
Texto adaptado do catálogo da exposição de David de Almeida na Fundación CIEC, Centro Internacional de la Estampa Contemporánea, Coruña, 2007.

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