Luiz Fagundes Duarte

I

1. O que primeiro se vê é a silhueta do artista contra uma pedra lavrada. Ao redor, como num cenário, a floresta. Na sombra, a tudo alheio, o homem interroga a pedra com os olhos, afaga-a com as mãos. Artesão.

2. Depois é a mão dele sentindo a pedra. Pelo meio, uma folha de papel: uma segunda pele da mão que sente, ou uma outra face da pedra que responde?

3. Uma pedra de ler o Sol no sombrio da floresta. Não era assim em Serrazes, quando os lavradores a afeiçoaram no outro lado do tempo: então era a luz, e os seus jogos de sombras, quem interpretava a gramática gravada na pedra, dela tirando sentidos.

4. Quedou-se no esquecimento dos séculos a pedra lavrada com verbos de medir o tempo. Agora a luz que a toca vem coada das árvores. Porém os olhos do artista interrogam-na também. As mãos seguem o olhar.

5. Fale-se de pedra gravada – de Serrazes ou da Seixa, tanto faz – porque a pedra gravada – ou escrita – é um registo de cuidados humanos: poren foi achada a escritura, que as cousas traspassadas per firmidom da escritura sejam sempre presentes como se lê pela mão de Jaime Eanes [1], num pergaminho medieval. Mas é da pedra que partimos: matriz.

6. As mãos que a gravaram, também criaram – antes, durante, depois – outros suportes de sentidos: misturaram terras, moldaram pastas, fundiram metais, entreteceram fios, aplainaram madeiras, afeiçoaram peles, fabricaram cores. Porque o artesão tem histórias para contar – e não há maior agonia do que trazer dentro de si uma história por contar. [2]

7. O que finalmente se vê é o corpo das imagens. Físico, material, saído das mãos que mais sabem moldar – as mãos do artesão, livres e espontâneas –, a cada gesto revelando memórias de outros gestos, dos gestos todos de todos os artesãos que ao passar do tempo foram descobrindo como é a pedra ou a terra, como são os metais ou as madeiras, os fios e as pastas, as peles e os papéis, como se fazem os desenhos e se imitam as cores, ou se inventa a luz – e como de todos se pode retirar – como o agricultor da terra, ou o pescador do mar – o que eles trazem consigo.

8. O artista vê e pergunta, e as mãos encontram a resposta.

II

9. As mãos respondem fazendo novas perguntas. São mãos que buscam na terra, mãos colectoras, e o artista com elas. Há folhas e ramos de eucalipto, caruma de pinheiro, escórias da floresta que sustém a luz, filtrando-a. E o artista, seguindo as mãos, inclina-se. Em contraluz.

10. Há terra por debaixo das folhas e da caruma. Há o armazém de pirotecnia, erguido nu, entre o chão e as árvores, como um insulto. E o artesão, inclinado, com um galho seco de eucalipto em cada mão, rebusca na terra. Que vê ele que a gente não veja?

11. Vê relevos e sombras. Vê cheiros e sons no chão da terra. Observa. Este chão revibra de formas e cheiros e sons – gravetos, pedrinhas, leivas; folhas em putrefacção, feitas já húmus; a aragem nas ramadas, os galhos a varrer as folhas mortas, a caruma. Raios de magra luz que reverberam. O que esconde a terra?, pergunta-se.

12. Por aqui passaram séculos, milénios mesmo. Lavradores de terras e de pedras, caçadores e pastores, guerreiros e caminhantes, matos e florestas – e por aqui tudo e todos deixaram pegadas. Pegadas sobre pegadas, que umas às outras se foram anulando, como pelo vento.

13. «Ex tot dei operibus nihilum magis cuiquam homini incognitum quam venti vestigium» [3]– de todas as obras de Deus, nenhuma é mais desconhecida ao homem do que os vestígios do vento.

14. O homem procura no chão. E encontra vestígios do trabalho dos lavradores de pedra antigos, uma espécie de pegadas no caminho que seguiram, como se fossem marcas do vento: são gravuras cujo sentido já ninguém entende, mas elas estão lá, identificamos mesmo as que foram deixadas antes e aquelas que vieram depois, porque uma pedra gravada é um livro de histórias passadas com o tempo. Quem as deixou lá, a umas e outras, seguiu o seu caminho – como o vento em seara por segar –, talvez sem se perguntar se alguém alguma vez se preocuparia em lhes entender o sentido.

15. O artesão é um colector de vestígios. Vareja o solo, e eles ali estão, revelando-se, gravados na pedra que o chão por tanto tempo escondeu. Passa-lhes a mão, limpa-lhes a terra, afaga-os a sentir-lhes os ressaltos. Cobre-os depois com pasta de silicone, tirando-lhes as formas. Colhe-os como a frutos maduros, para depois os recolher à oficina, cuidadosamente. Podem ser vestígios do vento, podem ser mais do que isso, e ele quer saber.

16. Na oficina, o artesão colector torna-se artista. E, muitos séculos depois, transfere da silicone para o papel – obra também das suas mãos – as marcas que os antigos lavradores de pedras, seus colegas de ofício, por ali deixaram. E assim se fecha o círculo da História: o artista faz-se um contador de histórias.

17. Histórias que se entrelaçam. Como em Stonehenge: outras pedras, suspensas no espaço e no tempo; dança de gigantes ao redor de um eixo, cristalizada. O que dançariam eles?

18. Ou como no cantar da baleia nas águas de azul profundo. De que destinos regressam estas caudas? De que histórias?

19. E os animais da terra, evocações de caças a haver. Quem primeiro leu este chamar que o tempo não apagou: quem dele fez linguagem, chamando, ou quem por ele se enleou, respondendo?

20. E por vezes há uma ilha no horizonte, sempre e de cada vez uma última fronteira: onde parará a estátua, numa ilha do fim do fim do velho mundo, do novo início do novo, representando um cavaleiro de dedo apontado a Poente [4], lá onde demoravam as derradeiras fronteiras?

21. E assim o artista se torna viajante. No tempo e na história, nos motivos e nas técnicas, nas cores e nos materiais. Não mais irá parar, que por esse mundo abaixo há muita história para escutar.

III

22. “De quem são as velas onde me roço? | De quem as quilhas que vejo e ouço?» [5] – ter-se-á perguntado o artista contador de histórias, como se fosse um navegador da volta do mundo.

23. Porque ele, diga-se mais e mais, anda por aí em busca de histórias para contar: enumerar acontecimentos e coisas, numa teia entrelaçada de sentidos. Para narrar, como diziam os antigos romanos enquanto os nossos lavradores de pedras por aqui labutavam: dar a conhecer como as coisas se passaram, delas deixando registo.

24. E vai contá-las, narrando-as. Porque já as traz dentro de si. No papel ou na tela; com tintas, aparas de madeira ou pontas de metal; com relevos e sombras, palhas e cordas de amarrar. Tudo serve para contar uma história que se traz cá dentro. Pintura, gravura, colagem, escultura: onde acaba uma arte e começa a outra?

25. Tudo nesta história é coisa de ser contada: do mar, velas, mastros, quilhas de navios, baleias que viajam; da terra, pedras gravadas, terras, palhas, folhas, tecidos, desertos, animais que sonhamos: do vento, as pegadas que tudo cobrem; das mãos do artista, a narrativa. E do ser humano, as mãos que fazem: homo faber.

26. São insólitas as cores. Ruídos da terra, não maneiras de reflectir a luz.

– Onde acaba o objecto e começa o seu retrato?

– Na mão do homem.

27. De vez em quando, o silêncio do branco.

IV

28. O homem faz parte de tudo. É uma frase da narrativa que ele próprio fabrica – como a Terra, a Água, o Fogo ou o Ar. No entanto, nunca saiu da Terra, de que é pedra por gravar. Nunca saiu da Água, de que é gota por beber. Nunca saiu do Fogo, de que é faísca por alastrar. Nunca saiu do Ar, de que é vento por soprar.

29. É por isso talvez que há sempre um regresso às pedras suspensas de Stonehenge – que vistas do céu são pedras do chão. Passadas do homem no seu regresso da história, aos círculos.

30. De vez em quando, o vazio do negro.

31. Pelo meio, a caixa de madeira do artista, como nos chineses antigos a caixa da caligrafia: entre o branco e o negro que são os limites do pintor, a pequena taça da cor e o branco estilete da forma.

32. No fim, regressa a geometria: uma leitura do espaço e daquilo que o ocupa. O arco perfeito do risco do compasso; a esquadria absoluta da madeira aplainada. E o ensaio da cor: entre o vazio do negro e a plenitude do branco.

33. O homem já não é a medida de todas as coisas.

V

34. Seria o negro o princípio de tudo?

Mas depois veio a ordem das coisas, emanada do castanho da terra e do azul sideral. E a mão do homem foi dispondo sinais – como as setas que apontam caminhos, ou traços de sentidos que agora não passam de vestígios de alguém que passou. Do lado de cá, o artista recolhe-os e dá-lhes uma gramática. Agora, são linguagem: Homo ludens.

35. Troncos de árvores cravados de ferro: da madeira se faz a forma. Como nos cavernames dos navios, ou nas asnas dos tectos das casas.

36. E tudo poderia acabar-se naquela vela negra, como a do navio de Teseu no regresso a Atenas, perdida a sua Ariadna. Quantos mostrengos – ou minotauros – foi preciso vencer?

37. E no entanto, há um engano na linguagem do homem: como descortinar todos os sentidos escondidos? A arte dilata a linguagem, alarga-a para lá das palavras.

38. Mas resta a mão do homem, medida de tudo o que é importante: o molho de fios ou de varas – manuculu – é a medida exacta. É com esta mão que o artista – David Almeida – tira as dimensões ao mundo.

E lhe dá as respostas que o vento da memória não apagou.

Catálogo Exposição Palácio Galveias, 2010-2011



[1] Registando a voz do rei D. Afonso III no dia 24 de Junho de 1273.

[2] Zora Neale Hurston, algures.

[3] Assim escreveu Michel de Montaigne numa prateleira do seu gabinete de trabalho, transcrevendo do Eclesiastes por uma fonte não comprovada.

[4] Damião de Góis assegura que se via algures na ilha do Corvo, então chamada do Marco, a estátua de um cavaleiro, talhada na rocha, apontando para Ocidente.

[5] Fernando Pessoa, dando voz ao mostrengo que está no fim do mar.


In David de Almeida, Edição ACD, 2008

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