Arte pura, pura arte

A pureza associa-se à nudez, às formas límpidas e à diafaneidade do cromatismo, ao clamor da inocência. A exposição inicia-se no ano de 1982 e prolonga-se, como um espelho que reflecte a sua vida, até hoje. Começou neolítico, linguagem de signos, de sulcos, de grafias primitivistas, gravuras rupestres, que anunciavam um processo primigénio, fiel até descobrir e conformar um labirinto de luz.

A pureza na arte assimila o orfismo, o neoplasticismo, a abstracção lírica, o minimalismo, a arte pura, o purismo. As suas fontes teóricas adquirem validade na tese de Kant sobre o desinteresse do juízo estético pelo prático. A arte, durante o século XX, teve presente a meta da depuração, onde há que situar a obra, embora tenha atravessado fogueiras barrocas que não a queimaram.

Em 1917, o neoplasticismo de Piet Mondrian propõe um despojar da arte de qualquer elemento acessório numa tentativa de chegar à essência através de uma linguagem plástica objectiva. Na Bauhaus, Ludwig Mies van der Rohe propunha o seu “less is more”, que faria sucesso no minimalismo, termo utilizado pela primeira vez, em 1965, pelo filósofo Richard Wolhein, para se referir às pinturas de Ad Reinhardt. O minimalismo nasce como reacção aos excessos da pop-art, nos anos sessenta e eclode de forma extraordinária em 1970. David de Almeida não é um pintor minimalista, mas está imerso nas correntes desses anos, que terão influenciado o seu trabalho.

Um perfume de geometrias e colagens traduzem situações trágicas em líricas, sem concessões, com a pureza e sobriedade dos brancos. Há uma tendência evidente para a abstracção, sem se desviar do antropocentrismo. A obra não é alheia ao homem. Por isso, convém falar de sensibilidade, atitude, de ser antes da vida. De amor pela vida, paixão, ternura, lucidez, espelhos nos quais se olha a luz, com vocação de ordem, transcendendo a matéria.

Inclusivamente nos momentos agitados, existe ordem nesta obra. O desenho é instrumental, ferramenta para articular a sua expressão, seja pintura, escultura ou gravura, que aparentemente não tem nada de desenho, mas que sem a sua capacidade de compor, encaixar, concretizar, não seriam possíveis as atmosferas que recria.

Nas suas assemblages importa as impurezas que o purificam. Descobri-o a pintar com a matéria, pasta de papel tatuada com fios de cobre de onde floresciam texturas verdes sublimes, na delicada marca da sua execução e no assombro da sua cor. Como vestígios arqueológicos de onde reverberava a luz, a magia e a beleza.

Na sua pintura pisou uma flor que cultivou Li Po, um resplendor de neve e azeviche. Teve contacto com o Oriente, expôs no Japão - no passado mês de Maio fê-lo de novo, em Tóquio -, e em Macau, mas, antes, já pintava com tintas, molhando a sua cana de bambu nas paisagens da dinastia Tang, nas vistas Chinesas e na terra do haiku. Não foi cego ao automatismo controlado, ao poder da linha, à orientação Zen, ao mistério que a poesia enaltece.

A sua vocação de essencialidade depurará o seu traço e o seu conceito, estilizará as formas, levando a um ponto extremo a sua depuração. Cores planas, sobre fundos preparados, vibrarão até se transformar numa pintura luminosa, substancial na sua eficaz essencialidade, sensível. Muitos se perguntam “Isto é pintura?”. Eu respondo: não é só pintura, é mais, é o coração da pintura! Que artista não anseia pela beleza? José Maria Eguren, em “Motivos”, pág. 63, assegura: “A arte é o instrumento para a exteriorizar”. Estão na tradição da pintura-pintura, que ele vai moldando, reconduzindo, até desembocar no palácio dos seus sonhos, que é um cosmos amplo, diáfano, limpo, cheio de luz, de perfume, de poesia, de carisma.

Na década de noventa, os metais, a serapilheira, o ferro, dão um toque mineral e objectual à sua pintura, habitando-a; entre séculos, a partir de 2000, essas referências vão sendo substituídas por planos, luzes, evocações geométricas que o devolvem a outro estado de pureza, ao diálogo do vazio e da subtileza, onde constrói poemas cuidados e belíssimos.

Em permanente diálogo com o tempo, a sua obra foi-se limpando de reflexos, apurando, ficando nas suas mais secretas estruturas, pura presença, sem outras referências senão a sua sensibilidade, construindo um estilo Almeida, que é distinto de outros. Institui espaços para a integridade, a harmonia e a clareza, os três elementos que para Stephen Dédalus, apoiado em Tomás de Aquino, requer a beleza.

Agora fala-se menos de estilo, de beleza, de linguagem. E mais de marca, de mercado, de comércio, de cotização. Diz Azorín, o grande mestre spanhol do estilo, o grande poeta em prosa, em “Una de hora de España”: “ E o estilo, em último resultado, não é senão a reacção do escritor perante as coisas… A primeira no estilo é a claridade. Quem pensa claramente escreve claramente”, págs. 38 e 39, edição Espasa-Calpe.

Nunca é o mesmo o que se pode construir com a palavra e com a imagem, mas aqui acontece. É um estilo moldado por ele, útil á sua expressão, mas a nenhuma outra, não se admitem seguidores, porque se transformam em plagiadores. A sua simplicidade expressiva nasce e morre nele, é algo genuíno, único, fácil, diferente, elevado, artífice de uma sóbria elegância de exultante simplicidade. Não serve tudo isto para identificar o estilo de Almeida?

Almeida tem estilo? Claro que tem estilo! E como é? Subtil, claro, nobre, directo, nu, particular, poético. É a sua reacção perante as coisas. A sua atitude que se apresenta de uma forma elementar, arquetípica, sem outros aditamentos excepto o imprescindível. Uma forma de dizer, com uma clareza precisa, as coisas complexas. Um estilo à margem, harmonioso, com inexpugnável vocação de essencialidade.

Num texto de 1922, “El secreto profesional”, sentencia Jean Cocteau:

“O estilo não pode ser um ponto de partida. É um resultado. O que é o estilo? Para muita gente é um modo complicado de dizer as coisas mais simples. No meu entender: um modo muito simples de dizer as coisas complicadas”.

Estamos no estado alcançado pelo nosso criador: um modo simples de dizer coisas profundas. O processo foi longo, continua, não acaba nunca. Não existe uma simplicidade frustrada, senão resultado, síntese, renúncia a tudo o que não seja precisão, exactidão, idoneidade.

O estilo é uma inteligente e eterna procura. O artista, em cada obra, recomeça o seu caminho. Vai às cegas por onde não sabe, sabe o que procura, valoriza o que encontra, mas não deixa de investigar, de duvidar e essa comunhão com a dúvida fá-lo encontrar o ouro, por vezes, onde não esperava.

O artista caminha por um fio fino, que se pode partir, que se parte às vezes. A pintura é um sonho que tem de ser sonhado, é preciso ambicionar a sua realização.

É falsa a pretensão de que o artista não conhece o que encontra. Deixaria de ser artista! Se não se surpreende a si mesmo antes que aos outros, não faz arte, senão frustrados jogos de malabares! Encanta, desconcerta com as suas propostas e quem “desconcerta, ofende”, aponta Cocteau.

O estilo é a clareza. Perfume Azoriniano, na demora, “nos primores do vulgar”, recreio no detalhe, no mínimo, para dizer mais. Para Guy de Maupassant: “os grandes artistas são os que impõe à humanidade a sua fantasia pessoal”.

No pré-renascimento, auge de Giotto, Masaccio ou Cimabue, a pintura esteve influenciada pela essência Bizantina, cheia de orientalismo e natureza, mas em lugar de seguir o rumo da pintura-pintura, os pré-renascentistas inclinaram-se para a reprodução da realidade, seguindo o capricho dos seus benfeitores, iniciando assim outro tipo de pintura que privilegiava o referencial, a realidade convencional, esquecendo-se do “resto”, quando esse “resto” é o que mais interessa.

Braque repetia, com sossegada insistência, que o que mais o interessava na arte é o que não se pode explicar. Enquanto o Ocidente tem como meta encontrar um modelo, para o reproduzir, o Oriente apostou na presença, alheia ao referencial; aí se situa o trabalho de Almeida: um ritmo de seda tingiu a sua síntese presente de uma subtil e hipnótica elegância. “A beleza é uma síntese”, disse Eguren.

Sem mistério, sem magia, sem emoção, há outras coisas: decoração, moda, marca, outras coisas que nada têm a ver com a arte. Existe esta pintura tão nua, tão carente de subterfúgios, tão distinta, um grande oximoro, que reúne contrários não para os enfrentar, mas para explicar essa personalidade por vezes contraditória, sempre sensível, rebelde, doce e ácida, de pólvora e espuma do autor.

Criador puro, emergido nos anos 70 – em 1976 realiza a sua primeira exposição individual -, que se consolida numa pop límpida, no eterno processo de depuração, para se situar num pulcro essencialismo. Mestre da gravura, escultor, interventivo, multidisciplinar. Aqui mostra-se uma antologia da sua plástica, vestígios do artista compulsivo, sibarita, elegante; exigente e flexível, inquieto, veemente, frágil, sólido, calígrafo das estruturas do fogo e da neve.

Aqui reina o contorno da cor, da dimensão, que brilha com manifesta elegância, mostrando toda a presença da arte desde a mais sóbria ascética formal. Pura pintura! Fome de pureza, não de purismo. O termo purismo alude a três movimentos diferentes e distantes no tempo. Na segunda metade do séc. XVI, a segunda etapa da arquitectura renascentista em Espanha, desenvolvida por Alonso de Covarrubias, Gil de Hontañon ou Pedro Machuca, é conhecida com esse termo. Assim como o movimento do Ottocento italiano, manifesto de 1842, assinado por António Bianchini, Tommaso Minardi, Pietro Tenerani e Frederik Overbeckv, que pretendia recuperar a pureza dos primitivos italianos Cimabue, Fra Angélico ou Giotto.

Em terceiro lugar, a corrente artística que abarca desde a pintura ao urbanismo, 1918 a 1925, integrada e promovida por Amedée Ozenfant, Le Corbusier e Paul Demée, entre outros. A 28 de Agosto de 1947, no Centro Cultural Fray Mocho de Buenos Aires, pronunciava uma conferência Witold Gombrowics, com o título subversivo de “Contra a poesia”. Don Witoldo, como o chamavam na Argentina, fazia uma aproximação à poesia, limpando-a de hermetismos e prosaísmos, de vacuidades e tautologias e perguntava-se: “Porque não gosto de poesia pura? pelas mesma razões pelas quais não gosto de açúcar <puro>. O açúcar é bom quando o tomamos junto com o café, mas ninguém comeria um prato de açúcar: seria demasiado. É o excesso que cansa na poesia: excesso de poesia, excesso de palavras poéticas, excesso de metáforas, excesso de nobreza, excesso de depuração e de condensação que assemelham os versos a um produto químico.

Satiriza, um tanto, e caricaturiza, mas não deixa de ter razão. Não mais produtos químicos sem química com a sensibilidade! A poesia é mais livre e mais diáfana, quanto menos a submetemos a corpetes, feitos não importa por quem. Acontece o mesmo com a pintura, com a arte. Aqui, em David de Almeida, ao dizer pura pintura, estou a dizer pintura livre, intuitiva, nua, utópica, como um canto genuíno da alma, surpreendente para si e para todos, sem governo de ninguém, como o vento, um relâmpago na escuridão, como uma carícia do espírito, um clamor de inteligência nas mãos da simplicidade.

Em alguns momentos desta trajectória, há a sensação de estar perante fragmentos de uma enorme cenografia em homenagem a Washington Barcala, aquele uruguaio naturalizado espanhol, de uma enorme ternura, que se escondia na sua boémia aromatizada por uma exultante elegância natural.

Cálidos cenários onde a vida acontece. Âmbitos para onde a alma do artista se retira para se perpetuar com um toque heideggariano. Na exposição da Galeria Enes, Lisboa 2003, alcança um nível expressivo magnífico e uma orientação mágica do espaço, numa cartografia feiticeira e talismã.

Entrega-se à integração mais antropológica, na sua série Morro de São Paulo, Baía, 2007, imbricando o acervo popular e primitivo no seu oculto espírito de artista culto do nosso tempo. Grande leitor, melómano, amigo de grandes autores, colaborador de Saramago, privilegiado por Rogério Ribeiro. Espírito contaminado de humanismo, de pensamento, e no entanto, audaz criador de formas essenciais no tempo, administrando uma nudez assombrosa, estruturas de ordem e razão, como se pode ver na saga das suas mais recentes esculturas, que fortalecem o seu idiolecto.

A sua vida criativa tem algumas particularidades, destacando-se o facto de ser Prémio Nacional de Gravura em Portugal e Espanha. Em Espanha obteve todos os grandes prémios de gravura - Calcografia Nacional, Júlio Prieto Nespereira, Maria de Salamanca, Jesus Núñez. Contudo, a atribuição de prémios à sua prestigiosa obra gráfica, teceu um perigo: que ao ser considerado um grande mestre da gravura se esqueça a dimensão da sua realidade de artista total. Esta mostra lisboeta nas Galveias vem colocar as coisas no seu lugar e matizar o estado da questão. Estamos perante um dos artistas actuais mais destacados de Portugal, com relevância no âmbito internacional e um dos mais nítidos e complexos criadores da geração que triunfa na década posterior à Revolução dos cravos.

David de Almeida, artista, particular, generoso, vulnerável. Perito em seivas e cromatismos, purificador das argilas, do sol e dos espelhos do mar que arde azul, como os seus sonhos. Poeta branco, celeste, órfico, que vigia o diálogo da existência, enquanto a vida segue e o tempo observa, desde o seu belveder da eternidade, como os homens se submetem às modas, enquanto que alguns construtores de utopias criam, com o seu sentir materializado, formas que permanecem. Repletas de dimensão e de tempo; obras que nos servem para viver uma vida fértil que potencia e salva a memória do Homem.

Tomás Paredes
Presidente da Associação Espanhola de Críticos de Arte

Tradução de Inês Almeida

In Catálogo Exposição Palácio Galveias 2010-2011

pt | en